Praias do Baleal - por Tomaz Bairros
Venho defendendo há algum tempo a tese de que o Baleal (Ilha) só tem duas praias. São elas a Praia dos Barcos e a Praia das Cebolas.
As outras praias pertencem ao istmo ou ao continente. Não deixam por isso de ser do Baleal, antes pelo contrário; A praia do Baleal abrange toda a faixa costeira desde a Praia Norte de Peniche até à margem sul da Lagoa de Óbidos. Para mim, tudo isto é Baleal, o Grande Baleal.
Mas centremo-nos nas praias da Ilha que atrás referi.
Tenho saudades das manhãs na Praia dos Barcos, da chegada dos pescadores com as redes repletas de peixe, onde por vezes vinham cações gigantes e, mais raramente, sem querer, uma tartaruga a justificar romaria à praia.
Depois, com a subida da maré, vinham os banhos na sua água transparente, muita natação até ao verdinho que está para além da barreira de limos e os mergulhos de lá de cima da rocha inclinada. Era uma praia matinal por excelência, que por estar abrigada do vento, proporcionava também na sua areia quente, granulosa e fofa umas boas sestas entre os poucos barcos de madeira, enquanto o sol não desaparecia.
Era também uma praia pouco popular entre forasteiros o que tinha a vantagem de nos estar praticamente reservada. Uma espécie de praia privativa, quase uma extensão diurna do Clube.
Hoje, chamam-lhe Porto dos Barcos e, de facto, dificilmente se pode considerar uma praia. Está pejada de barcos de fibra e restos seres marinhos capturados que ficam a apodrecer na areia à espera da visita nocturna das ratazanas.
Como escapar à nortada agora que a Praia dos Barcos deu lugar ao porto dos ditos?
A resposta pode estar na Praia das Cebolas, Onions Beach, como a terá baptizado no início do Século XIX um oficial de Wellington ao verificar a abundância do apreciado bolbo, versão silvestre, na extremidade sul da Ilha do Baleal.
Não se sabe ao certo se foi a Praia das Cebolas a dar o nome à Ilha com o mesmo nome (desabitada vai para 20 anos) ou se foi o inverso.
Nem se sabe o que fazia o subordinado do Marquês de Torres Vedras na nossa praia mais meridional. Provavelmente, tentava dormir uma sesta abrigado do vento norte.
O mesmo que eu num sábado de Julho do ano passado. Deitado na fina areia seca, digeria as vinte e duas sardinhas que comera no Acácio mais a salada de pimentos e pensava em como seria o Baleal de há 200 anos. Terá chegado a ser invadido pelos franceses?, interrogava-me.
Por trás de mim, a norte, fica uma falésia argilosa, côncava, que, à sua escala, faz lembrar o Grand Canyon visto lá de baixo. À direita, uma enorme laje branca meia deitada parece, do ângulo em que a observo, uma montanha nevada ou um glaciar. Uma expedição de formigas sobe até ao seu topo. Com o calor do sol das 5 rapidamente sou tomado pelo sono. Cochilo e, passados uns minutos, não sei quantos, convenço-me de que a praia é invadida pelas tropas de Junot. Planeiam um cerco com tal balbúrdia que o inimigo dificilmente será surpreendido.
Viro-me estremunhado e vejo três soldados de fato preto tipo smoking e lacinho vermelho armados com pequenas lanças de cana. Têm as calças molhadas até à canela e as camisas de folhos por fora. Surpreende-me o seu francês, tão fluente para a idade. Tentam, sem sucesso, resgatar um caranguejo do esconderijo. Viro-me de novo para oeste e tento recuperar o sono. Com todo este barulho é difícil… Retomo a linha de formigas que sobem o glaciar.
Lá em cima, de súbito, por entre os chorões, um ser de farta cabeleira desgrenhada, cara vermelha inchada, bigode ralo, vestido preto e carteirinha tipo madre-pérola com alça dourada grita com voz estridente: "Jean Pierre!, vaija levar tanta cachaporra quando eu disser ao tê pai… Já cá par ciema mais os tês primos!". Jean Pierre, o soldado mais velho, não precisa de dar ordem aos outros para retirarem. Sobem o Grand Canyon cabisbaixos por um carreiro e o conjunto sapatos pretos de verniz / meias brancas adquire uma cor uniforme, castanha.
Os noivos não podem esperar mais e já se ouvem ao longe no pontão as buzinas ritmadas da caravana matrimonial.
No topo da falésia, Junot deixou de vociferar e observa triunfante a lenta arregimentação das  tropas.
Uma ligeira brisa refresca o ambiente e traz um delicado perfume a onions. Está restabelecida a ordem e o silêncio. Posiciono-me para continuar a sesta, tenho o corpo moído e, num ataque de nostalgia, sinto saudades da minha velha Praia dos Barcos.
Já não voltei a dormir.
De qualquer forma, obrigado, meu general.
 
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